- Enquadramento Temático
Os acidentes de viação são sempre situações geradoras de alto nível de conflituosidade, e, ainda que o seu causador seja titular de um contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, o processo de regularização pode não correr de feição para o lesado, i.e., de acordo com as suas expectativas, o que pode fazer o conflito resvalar para o âmbito judicial.
Nestas ocasiões, tendencialmente, as acções judiciais são intentadas, exclusivamente, contra a Companhia de Seguros, muito por conta da ideia segundo a qual, o causador do dano, aquando da subscrição do Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, terá transmitido totalmente a sua responsabilidade àquela.
Assim, surgem distintos questionamentos, como por exemplo: (a) é correcta tal acepção? (b) existe amparo legal no ordenamento jurídico angolano? (c) quais são as consequências do ponto de vista jurídico-legal? Estas são as perguntas que elegemos para nortearem a nossa abordagem.
- Da Acção Directa[1]
Alguns operadores do Direito, no que se refere às duas primeiras questões de partida, supramencionadas, tendem a responder afirmativamente, buscando sustentação para sua tese no facto de o diploma que rege o contrato de seguros prever a faculdade da Acção Directa, que se consubstancia na possibilidade de o lesado accionar directamente o segurador do autor do dano.
Ao contrário do que pode parecer significar, a norma suso citada, tão simplesmente, faz referência à excepção que se abre no caso dos contratos de seguros obrigatórios – verdadeiros contratos a favor de terceiros[2] –, permitindo-se que, além do Tomador de Seguro ou Segurado, o próprio lesado/ vítima realize a participação do sinistro, junto da seguradora do autor do dano, cabendo a esta última, realizadas as necessárias diligências, e comprovando-se os factos participados, indemnizar o lesado/ vítima, tendo por base a sua reclamação[3].
Resta, portanto, sobejamente cristalino que, aqueles que sustentam a sua tese na norma à margem referida, incorrem, indubitavelmente, num perfeito equívoco.
Qual será, portanto, a solução do ponto de vista do ordenamento jurídico angolano?
- Litisconsórcio Necessário Passivo[4]
Ao arrepio do que apregoa o brocardo latino “in claris non fit interpretatio”, vemo-nos, aqui, impelidos a promover a devida exegese de uma norma cujo sentido per se é por demais evidente.
Exprime o número 1 do Artigo 22º do Decreto n.º 35/09 de 11 de Agosto – Sobre o Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel –, com a epigrafe Legitimidade das Partes e outras Regras que, “as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil, quer sejam em processo penal e, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente contra a seguradora e o civilmente responsável.
Ora, como se pôde depreender do supradito, a lei – de modo vítreo – impõe que, nas acções que visem a efectivação da responsabilidade civil automóvel, se opere o Litisconsórcio necessário passivo[5] entre a Seguradora e o civilmente responsável, para que a decisão judicial produza o seu efeito útil normal[6].
Dito de outro modo, significa que, necessariamente, se deve promover a intervenção – passiva – dos vários interessados na relação material controvertida, i.e., aqueles que têm interesse directo em contradizer o pedido formulado pelo Autor, por a eventual procedência da acção causar-lhes prejuízo[7].
Destarte, de modo lacónico podemos dizer que, as acções que visem a efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação devem ser deduzidas contra a Seguradora, Condutor do veículo segurado e o Segurado – os dois últimos enquadrados na categoria de responsáveis civis.
Entretanto, o que fazer caso, ainda assim, se confronte com uma acção judicial da presente estirpe, em que o Autor decida fazer tábula rasa daquele imperativo legal, e, caprichosamente, não cumpra o Litisconsórcio necessário passivo?
- Ilegitimidade Passiva do Réu
Como se pode depreender pelo subtema, a consequência jurídica não será outra senão a declaração de ilegitimidade passiva do réu, o que resulta claro do número 1 do Artigo 28º do CPCA, onde se lê que, “se [...] a lei ou o negócio jurídico exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade”.
Como corolário lógico da ilegitimidade do réu[8], por não ter sido demandado em conjunto com os demais litisconsortes, ao abrigo do disposto na alínea d) do número 1 do Artigo 288º do CPCA, resulta que o Juiz se deverá abster de conhecer o pedido formulado pelo Autor, e absolver o Réu da instância.
Eis, portanto, as consequências gravosas da não observância dos comandos legais existentes em torno da matéria epigrafada, das quais, por meio do presente artigo, pretendemos prevenir o Caro Leitor.
[1] Artigo 35º, Decreto n.º 2 /02 de 11 de Fevereiro – Sobre o contrato de Seguros
[2] Figura regulada nos Artigos 443º e seguintes do Código Civil angolano. Consiste em uma das partes (promitente) assumir perante outra (promissário) a obrigação de efectuar uma prestação a um terceiro que não é parte do contrato.
[3] José Vasques, Contrato de Seguros, 1º Ed. 1999, Coimbra Editora, pág. 300.
[4] Vide, Artigo 28º, Código do Processo Civil Angolano (CPCA)
[5] Situação processual em que duas ou mais pessoas (chamadas de litisconsortes) litigam em juízo, como demandados ou réus.
[6] O efeito útil normal da sentença é declarar o direito de modo definitivo, formando o caso julgado material. – J. Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 95.
[7] Vide, N.º 2 do Artigo 26º do CPCA.
[8] A Ilegitimidade passiva é, igualmente, uma excepção dilatória, que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da Causa, dando lugar à absolvição da Instância por parte do Réu. Vide, Al. b) N.º 1 Artigo 494 do CPCA.
Aos 29 de Jan de 2024